exemplo, os capitulos sobre os Papagaios, Tucanos e Beijaflores são muito mais extensos do que deveriam ser por coherencia, attendendo á escala e ao ambito. Como, porém, não escrevo esta obra para o mundo sabio, sim e em primeira linha para o povo, o leitor benevolo, estou certo, não me levará a mal, talvez mesmo me agradeça, tal irregularidade.

As paginas seguintes não tresandam sem duvida bafio.de gabinete ou de bibliotheca. A mór parte foi sentida lá fóra na matta, segredada pela Natureza. Uma das mais bellas aspirações seria transportar para aqui o mais possivel daquelle aroma que rescende do mundo animal no estado de liberdade, em seu meio verdadeiro, in loco. Quem, como eu, passou annos a flo, de espingarda ao hombro, de madrugada e noite fechada, por serras e varzeas, por descampados e mattas, ao calor e ao frio, suado, ás dentadas dos mosquitos, aos espinhos, de roupas rasgadas e mãos sangrando, alegre e diligente para auscultar as pulsações do mundo de organismos, não tem que receiar-se da pecha de plagiario.

Para mim será sempre enigma psychologico como ha gente que pretende o titulo de Naturalista, sem nunca ter visto o nascer do sol; faz prelecções, á maneira dos dialecticos medievaes, sobre tudo e mais alguma cousa, sem nunca dar passo com o martello geologico, a rede de borboleta, a espingarda, a caixa de herborisar. Buffon, de quem se diz que ao amanhecer já estava na banca de escrever vestido de ponto em branco, apparece-nos como figura «sui generis»; no juizo que delle formamos devemos, porém, não esquecer que os institutos e os jardins de Paris,sustentados pelo amor ao fausto e a magnificencia dos reis de França, e que foram o centro em que se formou o espirito deste fino poeta dos animaes, não lhe offereceram cousa muito diversa do que o zelo e o amor de muitos pobres diabos tinham colligido em muitas partes do mundo.

Quanto mais numerosas e mais completas forem as obser

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vações, tanto mais fundamentada será a conclusão, diz um aphorismo de logica. Sempre e em todo logar compenetrei-me desta sentença, e tenho procurado viver cercado de meus amigos animaes para tel-os à mão a cada hora, a cada instante. Para uma pessoa penetrar nos refolhos do caracter animal, nem um meio existe mais apropriado do que as observações feitas na vida livre, verificadas benevolamente em exemplares prisioneiros. Meu gabinete de estudo já estava cheio de Aves e outros animaes de toda especie no tempo em que na Italia, na Allemanha e na Suissa cursava ainda as sciencias naturaes nos bancos das Universidades. Desta mania não me curei. Ainda hoje, por exemplo, rodeiam-me mais de 100 Aves vivas da Ornis brasileira, de todas as ordens e familias.

Pelo que respeita á distribuição geographica, ative-me o mais possivel ás fontes mais fidedignas, -os resultados de Natterer. E' todavia de suppor que com o tempo muitas correcções irão se tornando necessarias ou antes ampliações, pois muitas especies que agora apparecem como peculiares de certos logares podem muito bem existir tambem em outros.

O presente livro apresenta diversas contribuições para a sciencia, aqui publicadas pela primeira vez. Entre estas contarei as diversas especies de Aves por mim reunidas na serra dos Orgãos, observações multiplas sobre diversas especies que mais ou menos exclusivamente moram só naquellas alturas, sobre a nidificação e reproducção de varias especies, por exemplo: Phibalura flavirostris, Lochmias nem atura, Pachyramphus nigriceps, Scaphidurus ater, etc.

Oxalá consigam as seguintes paginas seu intento principal, -derramar gosto pela natureza animada !

Rio de Janeiro, Anno bom de 1893.

DR. EMILIO AUGUSTO GÖLDI.

AVES

DO

BRASIL

I

LANCEAR DE OLHOS SOBRE A AVIARIA DO

BRASIL

Longa, bem longa é a viagem atravez de todo o mundo animal do nosso paiz. Ha dois caminhos para ultima-la. Podemos percorrer a escala zoologica de cima para baixo, descendo do composto para o mais simples, do mais perfeito para o mais imperfeito, ou inversamente. Escolhemos o primeiro, e eis-nos chegados ao segundo estagio do tronco vertebrado, as Aves.

A Ave, diz-se, é facil de conhecer pelas pennas; e em geral, considerando os animaes desta ordem que ainda vivem, não podemos negar que assim seja. Mas como dogma apodictico só debaixo de certas reservas poderemos acolher este rifão popular. Cabello, pennas, escamas, differem sem duvida no aspecto, não quanto á origem nem quanto à natureza. São todas formações epidermicas da mesma origem. Não esqueçamos que a Ave possue todas estas tres formações no corpo, bellos por vezes cercando a raiz do bico e semelhantes aos dos Mammiferos, embora neste caso especial repre

ca

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OVIPAROS E VIVIPAROS

sentem geneticamente pennas abortadas,

- pennas de

forma e contextura multiplas na maior parte do corpo,escamas, finalmente, nas pernas; e que são taes escamas sinão remanescentes da herança dos Reptis?

Tão rouco decisivo era aquelle argumento que, encontrando-se na ardosia lithographica de Solenhofen um Archaeopteryx fossil, apezar de ter este pennas no braço e nt cauda, não se pôde chegar a accordo quanto a saber si era um Saurio alado ou alguma Ave sauriforme, emquanto não se encontraram o craneo e o pescoço em segundo exemplar, melhor conservado.

Mas, contestava a zcologia antiga, as Aves poem ovos como os Reptis, ao passo que os Mammiferos parem os filhos vivos, pensando assim ter descoberto a pedra philosophal. A isto responde sorrindo a sciencia hodierna que o conceito de oviparidade e viviparidade de nenhum modo importa contraste insuperavel; representam antes dois elos successivos de uma só e mesma cadeia de desenvolvimento. Certamente não existe Ave vivipara; mas entre os Reptis conhecem-se diversos exemplos, que parecem depender das circumstancias e até certo ponto da vontade do individuo, em que este póde pôr ovos ou ter o filho já vivo. Entre elles contam-se diversas Cobras, a nossa Jararaca por exemplo, que no captiveiro costuma mimosear o dono com prole viva.

Por outro lado, e voltando-nos agora para os Mam* miferos, não se encontra precisamente traçado o limite da oviparidade na divisoria entre Mammiferos e Aves. Nos Monotremos, Mammiferos primitivos, de conformação singular que habitam a Australia, notara-se ha